Os Brasis e os gritos…

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“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante,
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante.”

Faz exatamente dois séculos que a tranquilidade do Ipiranga foi abalada pelo grito que – dizem – determinou a independência do Brasil. Diferentemente do que versa o nosso hino, o brado retumbante não foi proferido por um povo heroico. Coube ao representante do próprio colonizador dar um basta a mais de três séculos de exploração, e inaugurar a malfadada tradição brasileira de buscar um salvador da pátria para chamar de seu. Dom Pedro I – aquele cujo coração é incapaz sequer de desfrutar do descanso eterno – será eternamente lembrado como um dos grandes heróis nacionais, embora seu feito mais notável tenha sido motivado, sobretudo, por interesses particulares. Coincidência ou não, o fato é que abnegação, altruísmo e visão de longo prazo sempre foram características difíceis de ser encontradas em nossos governantes.

Apenas pouco mais da metade dos 200 anos celebrados hoje foi vivida de forma realmente livre. Um fração ainda menor testemunhou períodos de crescimento, de menor turbulência, de avanços significativos em diversas áreas. Aprendemos pouco sobre independência, sobre liberdade, sobre sociedade. Acostumamo-nos às dificuldades impostas pela nossa própria ignorância. Tornamo-nos reféns de nossos erros, cultivando o péssimo hábito de repeti-los à exaustão, ao invés de aprender com eles. Criamos nossas próprias bolhas, e recusamo-nos a enxergar que há muitos Brasis lá fora. Brasis que não reconhecemos. Brasis com os quais não nos identificamos. Brasis que preferimos julgar, rotular, condenar, e, por fim, ignorar.

Todos esses Brasis estão comemorando hoje o bicentenário da nossa independência. Muitos deles têm pouco a celebrar. Os mais otimistas ainda creem que, um dia, conhecerão o amanhã do eterno “país do futuro”. Eu também já cheguei a pensar assim. Hoje percebo que dificilmente deixaremos de ser prisioneiros da nossa própria incapacidade de nos colocar no lugar do outro. Nossa indignação é e continuará sendo seletiva. Fazemos parte de uma sociedade que se revolta – com razão – diante da corrupção perpetrada por um determinado grupo, enquanto finge não ver a roubalheira comandada por aqueles que limitam-se a defender uma ideologia antagônica. Indícios idênticos são chamados de provas irrefutáveis ou perseguições sórdidas, dependendo apenas de seus autores. Atitudes inadmissíveis por parte de membros do judiciário são contrapostas com incentivos a ações que destroem as instituições democráticas que sustentam nossa liberdade. Será que somos mesmo independentes?

Apesar de tudo, comemoremos. Façamos desta data um alerta à hipocrisia, à incoerência, ao retrocesso. Sejamos contraponto aos ataques à democracia, ao culto às ditaduras de todas as vertentes, à exploração da fé, à banalização dos malfeitos. Sejamos eternos inconformados, críticos e atentos às ações daqueles que elegemos, mas, principalmente, às nossas próprias atitudes. São duzentos anos livres do jugo português. Que, em breve, possamos comemorar os aniversários do dia em que nos livramos do messianismo, do fundamentalismo, de todo e qualquer tipo de fanatismo.

Parabéns, Brasil, ó Pátria amada.
Salve-nos, tempo, salve-nos da idolatria.

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