– Já estamos terminando, ok?
– Finalmente. Esse questionário é mais longo do que eu me lembrava.
– É porque passou muito tempo desde o último censo. Mas não tenho mais perguntas. Só estou calculando o valor a pagar.
– Não sabia que o censo seria cobrado.
– E não é mesmo. A cobrança é referente à dívida.
– Que dívida?
– Dívida histórica, é óbvio.
– Que bobagem é essa?
– Bobagem? Já vi que, além de branco, hétero e de classe média, o senhor é bem preconceituoso. Sua conta tá só aumentando.
– Minha filha, eu não vou pagar nada. Nunca fiz mal a ninguém na vida.
– Lá vem o papinho de santo de todo racista.
– Não me ofenda dentro da minha casa. Não sou racista.
– Ah, é? Se o seu filho chegasse com uma namorada negra, o que o senhor faria?
– Nada. A cor da pele não faz a menor diferença pra mim.
– E se fosse um namorado negro?
– De novo, a única coisa que importa é que meu filho seja feliz.
– E se fosse um namorado negro, trans, descendente de indígenas e portador de deficiência?
– Aí eu jogaria na loteria, porque a chance disso acontecer é bem menor do que a de acertar na mega-sena.
– Tá vendo? Sei reconhecer um racista de longe.
– Vamos esclarecer uma coisa aqui…
– Escurecer. Não venha com essa branquitude opressora pra cima de mim.
– Escurecida está ficando é a minha paciência. Não fiz nada de errado e não vou pagar por dívida histórica nenhuma.
– Seus ancestrais escravizaram negros, torturaram índios, exploraram pobres.
– Mesmo que fosse verdade, e eu com isso?
– A sua condição privilegiada é decorrente desses crimes.
– Você tem noção do quanto eu tenho que trabalhar todos os dias pra dar um mínimo de conforto pra minha família?
– E o senhor tem noção de quantas pessoas negras passam fome no mundo? De quantos índios morrem sem recursos nas reservas? De quantas mulheres são mutiladas no Oriente Médio?
– Eu sinto muitíssimo por todas as tragédias do planeta, mas se eu ficasse pensando em cada injustiça que existe, acabaria metendo uma bala na cabeça.
– À vontade, mas não sem antes pagar a sua cota da dívida.
– Eu já pago impostos altíssimos e ainda contribuo com muitas instituições sérias. Evidentemente não é o seu caso.
– O senhor está se comportando como um moleque.
– Sabia que a palavra moleque chegou ao Brasil através dos escravos angolanos? Você está sendo racista.
– Que mentira cabeluda.
– E ainda tem preconceito contra os calvos.
– O senhor não tem o direito de falar assim comigo.
– Direito? Discriminação contra o esquerdo. Vou ter que denunciá-la por racismo estrutural incompatível com o cargo que ocupa.
– Vamos fazer uma coisa? Vou abrir uma exceção para o senhor e dar como quitada sua dívida histórica.
– Quitada? Sou mineiro, minha filha. Minha terra foi explorada e meus ancestrais decapitados por portugueses. Aceito meu pagamento em euros…