“Seja uma pessoa de bem, filho” – costumava repetir meu pai. Seus conselhos – ditos com serenidade e doçura – ainda ecoam nas minhas memórias. Ele se referia a caráter, ética, honestidade, lealdade, discernimento, generosidade, e outros valores que lhe eram caros. Valores que fizeram parte de sua vida. Valores difundidos através de exemplos, bem mais eloquentes que meras palavras. Cresci disposto a ser como ele, a também me tornar uma pessoa de bem.
Muito tempo se passou. Meu pai se foi. Há mais de ano, o mundo luta para superar a maior pandemia do século. O Brasil – fiel à sua tradição de corrupção e populismo – tornou-se epicentro do contágio. Atentas, as autoproclamadas pessoas de bem preparam-se para sair às ruas. Preciso aproximar-me delas, afinal, são pessoas de bem. Quero também manifestar minha indignação diante do descaso, dos desvios de verbas, do atraso na aquisição de vacinas, da falta de coordenação, da incompetência, do deboche.
As pessoas de bem preferem sair em defesa da família, da democracia, da liberdade, da realização de missas e cultos, do direito de se defender. Valores nobres, sem dúvida. Mas não me junto a elas. Às famílias que essas pessoas de bem aprovam, só é permitido um formato. A democracia que essas pessoas de bem defendem começa com o fechamento de instituições, o cerceamento de opiniões divergentes. A liberdade que essas pessoas de bem propagam promete calar vozes contrárias. Os cultos que essas pessoas de bem promovem trazem mais dores que bálsamos neste momento. O direito à defesa que essas pessoas de bem reivindicam passa pelo acesso indiscriminado às armas, o aplauso à tortura, a justiça feita com as próprias mãos.
Recuso-me a ignorar a irresponsabilidade que se esconde no patriotismo dessas pessoas de bem. Recuso-me a seguir cegamente quem quer que seja. Não sou capaz de relevar a estupidez, a rispidez, o apreço ao conflito. Não consigo enxergar o bem nas ações dessas pessoas de bem.
Sinto, pai, mas não quero mais ser uma pessoa de bem. Não quero que seus netos sejam pessoas de bem. Sei que você me entenderia.
Cresçam, meus filhos, e tornem-se pessoas DO bem. Lutem por liberdade, mas não abram mão do bom senso. Valorizem a democracia, mas não se esqueçam da amplitude de seu significado. Defendam a família como a união do amor e lembrem-se de que amor não se julga. Sejam livres para expressar credos, crenças e convicções, mas respeitem as escolhas alheias. Saibam dizer, mas aprendam a ouvir primeiro. Atentem às verdades de cada um, por mais distantes que estejam das suas. Coloquem-se no lugar do outro. Valorizem a coerência, a gentileza, o diálogo. Encontrem sua própria voz. Não se calem.
Que o bem seja uma meta, meus filhos. Jamais se contentem com a alcunha.