Ainda não se sabe como o fenômeno aconteceu. Tudo anda tão confuso hoje em dia. Alguns especialistas afirmam se tratar de anomalia decorrente do uso prolongado de cloroquina e ivermectina sem o devido acompanhamento militar. Outros levantam rumores de que a vacina chinesa pode ter sido ministrada criminosamente no indivíduo, em uma afronta ao seu direito sagrado de raciocinar somente quando lhe convém. Seja pelas severas inversões intestinais ou devido aos efeitos nocivos do chip asiático recém-implantado, o fato é que – acreditem! – nosso personagem voltou no tempo.
Quando deu por si, Jacinto Onofre Pinto (apelidado de Jacinto Jair Mito nas redes sociais), conhecido comerciante da cidade de Borrazópolis, no Paraná, estava sentado no banco da praça central de seu município. Era junho de 2015, mas nada indicava que ele atravessara uma fissura no contínuo espaço-tempo. As calçadas e as construções ao seu redor eram as mesmas. A pintura intacta da igreja e o fato de que nenhum transeunte usava máscaras foram os únicos pontos que lhe chamaram a atenção. “O povo desta cidade está acordando” – pensou ele.
Absorto em suas divagações, Jacinto não notou quando uma mulher de cabelos longos sentou-se na outra ponta do banco. Valdirene Silva não tinha mais do que 30 anos e os óculos de grau que usava não conseguiam esconder um olhar atento e aguçado. Vestia uma blusa de malha vermelha, calças jeans e surrados tênis de caminhada. Desde o início daquele ano, Valdirene mudara seu nome no Facebook para Val Coração Valente, em homenagem à governante da época. Naquela tarde de sábado, se entreolharam pela primeira vez. Depois duas, três e, por fim, sorriram. Ele foi o primeiro a romper o silêncio:
– Você costuma vir aqui com frequência?
– Não, é a primeira vez. Tenho parentes na cidade e meus primos me chamaram para participar da manifestação.
– Não fiquei sabendo. Manifestação contra o quê?
– A favor do governo federal, na verdade.
– Puxa, conte comigo. Não aguento mais essa imprensa vendida tentando destruir o Brasil.
– Exatamente. Nem eu. Eles nem disfarçam o ódio que sentem. Meu cartaz diz: “Fora, Globolixo”.
– Perfeito. Não suporto aquele Bonner.
– E a Miriam Leitão? Choram porque acabou a mamata.
– Isso. Mas os piores bandidos estão no judiciário.
– Nem me fale. Quem consegue governar com um Gilmar Mendes fazendo merda atrás de merda? Se eu encontrasse aquele canalha na rua cuspia na cara dele.
– Eu já saía no braço. Foda-se se fosse preso depois. Teria valido a pena.
– Olha, eu sou da paz, mas com certo tipo de gente é só na pancada.
– Puxa, nunca conheci uma mulher lúcida e inteligente como você.
– Ah, que isso? É bom quando encontramos pessoas que pensam como a gente, né?
– Ô, e como. Muitos amigos já me abandonaram, dizem que eu tô cego, que sou fanático.
– Sabe que comigo acontece a mesma coisa? Será que esse povo não é capaz de ver o quanto o Brasil melhorou?
– Pois é. Também não entendo. Reclamam até dos acordos no congresso. Sem acordos, o governo não anda. Já critiquei o Centrão no passado, mas o Brasil precisa dele.
– Governabilidade. Se não fosse o Centrão, o Moro já tinha acabado com o governo.
– Nem me fale nesse cara. Que ódio que eu sinto dele. Traidor de uma figa.
– Qual é o seu nome?
– Jacinto, mas pode me chamar de Mito. E o seu?
– Meu nome é Valdirene. Mas meus amigos me chamam de Val.
– Olha, Val. Talvez você me ache atirado, mas eu nunca me identifiquei tanto com alguém assim, logo de cara. Tô falando sério.
– Eu também não, Mito. Aliás, que apelido mais bonitinho.
– Vamos tomar um café?
– Vamos.
E assim começou uma longa história de amor. Claro, ambos perceberam depois que não falavam sobre o mesmo governo. Mas era tarde. A paixão estava selada. Eles têm uma relação conturbada, quase tóxica. Discutem, brigam, se afastam por um tempo, mas não conseguem viver distantes um do outro. Mito costuma dizer que, sem a Val, ele não sobreviveria. Val também pensa o mesmo mas, orgulhosa, não gosta de admitir. Pelo andar da carruagem, essa interdependência promete durar muito. Quem será capaz de separar Val e Mito?