– Boa tarde. Eu vim pra vaga no setor de escrita criativa.
– Ah, ótimo. Seja bem-vinda. Quando você pode começar?
– Nossa! Já? Achei que vocês fossem me entrevistar primeiro.
– Olha, o batente aqui tá tão puxado que estamos pulando essa etapa.
– Mas eu nem sei qual é o trabalho.
– Ué, você tem que escrever.
– Sim, mas escrever o quê? Vocês trabalham com livros, jornais, revistas?
– Não, aqui trabalhamos exclusivamente para o governo federal.
– Então é comunicação interna?
– Não exatamente. Na verdade fazemos todas as revisões do manual.
– Puxa, não tenho muita experiência com termos técnicos.
– Não se preocupe. A linguagem é básica. Aliás, tem que ser bem básica mesmo pra que todos possam compreender.
– Ufa, que alívio. E quantos manuais vocês editam aqui?
– Só um.
– Um? Esse manual dá tanto trabalho assim?
– Você nem imagina. Estamos na revisão 673, só pra você ter uma ideia.
– Nossa, o original deve ter sido escrito há décadas.
– Nada, fez dois anos agora.
– Não é possível. Isso dá quase uma revisão por dia.
– Nosso recorde eram três. Mas só hoje estamos a caminho da quinta.
– Peraí. Que manual é esse?
– Manual comportamental dos seguidores do presidente.
– Eles precisam de um manual?
– Claro, senão ficam perdidinhos.
– E por que essa quantidade de revisões?
– Pra acompanhar as mudanças do chefe, é claro.
– Não entendi.
– Vou tentar explicar: na nossa primeira edição, por exemplo, os seguidores tinham que idolatrar a Lava Jato, ter horror a político corrupto, ser fã número 1 do Moro, considerar o Centrão o maior inimigo do país, querer privatizar tudo (inclusive a Ceagesp), achar que intervenção na PF é coisa de ladrão comunista, ser a favor da prisão em segunda instância e acreditar que filho bandido de presidente tem que ir pra cadeia.
– Ah, estou começando a entender…
– Bons tempos aqueles. O manual não tinha mais do que quinze páginas.
– E hoje?
– A edição que estamos finalizando terá 985. Mas são tantas desculpas, depoimentos e novos gráficos inventados que, na próxima tiragem, chegaremos a mil com certeza.
– Agora eu vejo por que vocês querem me contratar.
– Pois é. Trabalhamos 24 horas por dia. Agora mesmo estamos tentando explicar que as frases “não compro a porcaria da vacina chinesa do Dória” e “fui eu que banquei a vacina e ela é do Brasil” não são contraditórias. Podemos contar com você?
– Olha, infelizmente não vai dar. Vou aceitar o convite pra ser editora do jornal dos terraplanistas. Lá não vou ter tanto trabalho pra encontrar argumentos verossímeis, sabe?