Sempre considerei o outono a minha estação favorita. É a estação do bom gosto, como certa vez escrevi. O outono de 2020, entretanto, não deixará saudades. Talvez venha a ser lembrado como o trimestre que não vivemos. Certamente ficará marcado como o outono em que muitos deixaram de viver. O inverno brasileiro começou com mais de um milhão de casos de Covid-19 e mais de 50.000 mortos.
Um terço do ano se passou e não temos sequer um esboço de ações conjuntas de combate à pandemia. União, estados e municípios continuam agindo de forma descoordenada, cada qual respaldado apenas pelas suas próprias crenças – ou pior – pelas suas descrenças. Nesse outono, o país que deveria ser uma república federativa tornou-se oficialmente uma república corporativa. Poderes, entidades e movimentos lutam exclusivamente por seus próprios interesses e não dispomos de lideranças capazes de aglutinar objetivos e estratégias. Estamos à deriva.
A República Corporativa do Brasil não surgiu nos últimos três meses, é claro. O poder legislativo, por exemplo, funciona como uma corporação independente há décadas. Seus votos e apoios são historicamente condicionados aos cargos, às verbas, às contrapartidas. Eleição após eleição, os caciques do congresso se alternam na missão de impor suas condições aos governos. É o chamado poder “e o que eu levo com isso?”. Os interesses do país pouco importam.
O atual governo assumiu o executivo com a promessa de mudança desse histórico. Entretanto, ao invés de se estabelecer uma negociação saudável e legítima entre dois poderes interdependentes, optou-se pelo confronto. Optou-se pela simples demonização da política no momento em que uma nova postura se mostrava finalmente viável. Optou-se por transformar o executivo também em corporação, ainda mais fechada e restrita. Assim, multiplicaram-se medidas protecionistas concedidas a militares (as duas mais recentes em plena pandemia), nomeações e decisões puramente ideológicas e fundamentalistas, descartes sumários daqueles que ousaram divergir – mesmo que pontualmente – da vigente rigidez normativa. Agora, diante do desgaste que a inércia, o descaso e a irresponsabilidade frente ao maior desafio desde a Segunda Guerra provocaram, o executivo resolveu ceder ao corporativismo do legislativo. Como já sabíamos, promessas corporativas jamais resistem aos instintos de sobrevivência.
Por sua vez, progressivamente, o poder judiciário extrapolou suas funções e passou a legislar. Leis passaram a ser interpretadas de acordo com os interesses da ocasião com tamanha frequência que as decisões sucessivamente contraditórias deixaram de surpreender ou de causar indignação. O STF abdicou do seu papel de guardião da Constituição e assumiu o de polícia da sua própria corporação, apoderando-se do direito de censurar, de investigar, de acusar e de julgar casos em que ele próprio se coloca como vítima, numa evidente afronta ao Estado Democrático de Direito.
A sociedade civil aderiu à onda e se dividiu em diversas outras corporações. As duas mais barulhentas adotaram o formato de seita de fanáticos e elevaram seus respectivos líderes à categoria de deuses. Ambas consideram-se opostas mas guardam muito mais semelhanças do que diferenças. Assim, igualam-se na hipocrisia.
Outras menos turbulentas escolheram nomes mais palatáveis, inspiradas no politicamente correto. As corporações “lugar de fala” e “apropriação cultural”, por exemplo, conseguiram a proeza de invalidar opiniões e comportamentos sob a égide da diversidade e da liberdade. Uma incoerência, é claro, mas mascarar incoerências se tornou a especialidade das corporações brasileiras. Quem sabe um dia, quando a corporação das revisões históricas se tornar dominante, parte do que estamos vivendo deixará de nos parecer absurdo.
E assim, corporativamente decadente, segue a nossa República. Cada vez mais dividida, mais polarizada, mais alienada dentro de suas pequenas bolhas espalhadas pelo país. Não tenho dúvidas de que o inverno será testemunha de outras cenas de fanatismo, de contemporização de crimes, de cerceamento das liberdades, de afrontas à Constituição e, infelizmente, de muitas mortes absolutamente evitáveis.
Mas, tudo bem, não é? Ainda nos resta torcer para que não faça frio demais…