Nunca consegui memorizar provérbios ou ditados populares. Quantas vezes já me embaralhei com o cavalo sem dentes, o caolho rei dos cegos, a água que escalda o gato, e qual órgão deve ser apimentado antes de virar refresco. Em muitas dessas ocasiões, os indisfarçáveis olhares de desapontamento que provoquei foram seguidos de um condescendente: “não se preocupe, deu pra entender”. Pudesse eu escolher, teria optado apenas pela celeridade dos olhares.
Existem frases e provérbios, entretanto, que resumem muito bem os meus lemas de vida. Talvez por essa razão, desses eu consigo me lembrar com facilidade. “Não faça com os outros o que não gostaria que fizessem com você”, “olho por olho, e o mundo acabará cego”, “falar é uma necessidade, escutar é uma arte”, além de alguns outros, volta e meia aparecem nas minhas divagações. Um provérbio que tem sido bastante recorrente nos últimos tempos diz que “somente os tolos exigem perfeição, os sábios se contentam com a coerência”.
Ah, a tal da coerência. Nelson Rodrigues a considerava suspeita. Oscar Wilde a chamava de “virtude dos imbecis” – embora tal afirmação sempre possa ser atribuída a seu alter ego, Dorian Gray. Eu a considero um dos valores mais preciosos das relações humanas. Não é pra menos, afinal, a coerência anda cada vez mais escassa.
Talvez por estarem cientes de sua raridade, milhões de pessoas não são capazes de notar a falta que a coerência faz. Dia após dia, seguem aplaudindo e condenando atitudes semelhantes, dependendo apenas de seus autores. Seguem chamando delitos de crimes ou estratégias, de acordo com seus interesses. Seguem contemporizando ou zombando de absurdos, dependendo de quem os proferiu. Seguem chamando de ideológicas as atitudes de seus antagonistas, mesmo incapazes de avaliar suas próprias ideologias. Seguem enganando a si mesmos de tal forma, que sua capacidade de análise se limita a enxergar inimizade em qualquer divergência.
Em tempos de pandemia, com os nervos das pessoas ainda mais à flor da pele, a coerência parece estar sendo definitivamente esquecida. Gostaria de acreditar que se trata de um momento atípico, um ponto fora da curva. Não tenho essa ilusão. Não mais. Temo que a sina do brasileiro seja continuar involuindo. Temo que o destino da coerência no Brasil seja caminhar para a extinção. Temo que a própria palavra coerência adquira um novo significado daqui por diante.
Então não mais chamaremos de incoerentes aqueles que se manifestam contra a corrupção enquanto solicitam indevidamente auxílios do governo. Aqueles que se proclamam livres para recusar as máscaras de pano mas abusam das feitas de hipocrisia na busca dos “culpados” que lhes convêm. Aqueles que bradam por transparência mas aplaudem quando dados são deliberadamente ocultados. Aqueles que, há poucas semanas, empunhavam cartazes contra Maia e o Centrão e agora se calam diante da farra de cargos, ministérios e verbas bilionárias. Aqueles que ainda afirmam estarem salvos pela verdade mas não têm coragem de olhar para as suas próprias imagens corroídas pelo engodo que teimam em esconder, materializando o que Oscar Wilde um dia vaticinou.
Então, finalmente, a coerência terá mesmo se tornado a virtude dos imbecis!