Nunca fui muito afeito a pular carnaval na juventude. Confesso que as imagens idealizadas de alegria, bebidas, farras e mulheres me dando bola foram logo substituídas pelas ressacas, pelos foras e pelos cheiros de urina e desodorante vencido. Acabei por me juntar ao Bloco do Sossego, me filiar aos Acadêmicos do Sono Fácil e virar frequentador assíduo do Baile da Cachoeira Gelada. Dez anos atrás, motivado pelo aniversário de uma querida amiga, abri mão da minha tradicional e silenciosa folia anual e mergulhei em um rio de cores chamado Sapucaí. Atravessei aquela avenida representando uma entidade qualquer e cantei com vontade o samba que dizia que o Brasil era o país de todos os deuses, de paz, amor e união. Foi uma experiência única e, pelo menos até agora, não recebi reclamações por parte da tal entidade por tê-la representado sem o devido lugar de fala.
Há dez anos, o Brasil estava apenas começando a descobrir o intragável mundo do politicamente correto. Ninguém ainda questionava o uso de turbantes, cocares, seios postiços, lenços amarrados na cintura, e até as cores das maquiagens tinham pouca relevância. Hoje, até as escolas de samba – que sempre tiveram procuração reconhecida em cartório para representar deuses e minorias – deixam claro a seus carnavalescos que a criatividade, assim como a paciência, tem limites. Quem não obedece é sumariamente cancelado sem direito a apelação, e a pena passa a ser cumprida ainda na primeira instância. Cabem às celebridades canceladas, na tentativa de cancelar o cancelamento, jurarem que pediram autorização prévia ao deus ou à minoria representada. “Com consentimento pode”, dizem elas. Consentimento de quem, cara-pálida? Pergunto para, logo em seguida, perceber que não tenho lugar de fala para chamar alguém de cara-pálida.
Eu ainda sou frequentador e divulgador do Bloco do Sossego. Entretanto, se me dispusesse a sair fantasiado no carnaval de hoje, certamente tentaria ser mais discreto. Afinal, as pessoas se irritam com muita facilidade ao se verem representadas em uma fantasia, mesmo que o objetivo desta tenha sido uma homenagem, uma reflexão ou – como acontece na maioria das vezes – uma simples e irreverente brincadeira. Para evitar eventuais constrangimentos, eu buscaria temas abstratos tais como personagens fictícios, plantas e animais, sem nenhuma referência a quem quer que seja.
Poderia, por exemplo, me fantasiar de Transformer. Um herói do cinema jamais poderia se sentir ofendido, não é mesmo? O meu transformer de carnaval seria uma retroescavadeira que, ao assumir a forma humana, teria o curioso hábito de chamar os outros de babaca.
Outra opção seria me fantasiar de molusco. Como é carnaval, meu molusco seria um cachaceiro com mania de grandeza idolatrado por uma horda de águas-vivas, aquelas medusas acéfalas que costumam se queimar com todos que não fazem parte da mesma turba.
A própria água-viva daria uma ótima fantasia. Mas a minha água-viva seria daquelas que cospem, humilham e chamam suas colegas de gordas e velhas. Daquelas que ninguém tolera mas que nenhuma companheira água-viva aparece para criticar ou acusar de misoginia. Uma água-viva repleta do ódio do bem.
Passando do reino animal para o vegetal, poderia me fantasiar de laranja. Mas uma laranja especial, grande e coberta de calda de chocolate pra dar mais consistência e, principalmente, tentar esconder a fruta. Daquelas laranjas difíceis de serem encontradas mas que entornam o caldo facilmente quando são apertadas.
Uma outra fantasia politicamente correta seria a de uma planta frutífera qualquer. Digamos, uma bananeira. Não seria bacana sair pelas ruas distribuindo bananas pra todo mundo? Tem muita gente que acha.
Outro personagem cuja fantasia cairia como uma luva seria o burro falante. Mas um burro palhaço, não aquele sábio dos livros de Monteiro Lobato. Um burro que pode até falar mas não consegue ler. Um burro que se acha esperto mas só sabe trocar letras, botar banca e colocar nos outros a culpa pelos seus erros. Um impreCionante burro raiz.
Outra fantasia muito inocente e apropriada seria a de cavalo. Mas não um cavalo dócil e elegante. Minha fantasia seria daquele tipo de cavalo bem limitado, que só sabe relinchar e dar coices nos outros, e que não consegue conviver com os demais animais com exceção da grande boiada que o acompanha e o aplaude dia após dia.
Por falar em boiada, outra opção também seria me fantasiar de gado e… ah, pensando bem, não. De gado já é demais!
Viu como dá pra pular carnaval sem incomodar ninguém?