Sombras da censura…

LP BLITZ RISCADO

Não carrego traumas por ter nascido e crescido durante a ditadura militar. Meus pais não foram perseguidos, muito menos torturados. Vivíamos uma vida pacata, desprovida de luxos ou mordomias mas sem grandes restrições. Eu e meus irmãos estudávamos em bons colégios, jogávamos futebol toda noite na rua, passávamos nossos fins de semana e feriados no sítio do meu padrinho e, uma vez por ano, enfrentávamos mais de dez horas de estrada para mais uma temporada em uma casa alugada em alguma cidade litorânea do Espírito Santo. Casa que, com enorme frequência, ficava longe da praia de areia escura e mar turvo mais próxima. Pra mim, aquilo tudo era o paraíso.

Durante toda a minha infância, até os arroubos de ufanismo patrocinados pelos militares me pareceram corriqueiros. Ainda me lembro de vários trechos da canção que enaltecia as praias ensolaradas do Brasil e o esplendor do sol do meu país. Cantar “eu te amo, meu Brasil” não me parecia um comportamento estranho, nem conivente, muito menos alienado. Não estávamos expostos ao contraditório. Meus pais não eram favoráveis à ditadura. Mas, como a imensa maioria da população brasileira, também não eram contrários. Fui algumas vezes com eles acompanhar os desfiles de 7 de setembro como um bom programa de feriado, mas sem a reverência que muitos demonstravam diante das formações de tanques, cavalos e soldados. Tampouco meus pais me ensinaram a temê-los ou a considerá-los inimigos. Aquela era a nossa realidade e estávamos plenamente adaptados a ela.

À medida em que fui crescendo, entretanto, algumas situações passaram a chamar a minha atenção. A primeira delas foi quando aguardava ansiosamente pelo início do meu programa favorito e um filme foi transmitido em seu lugar. No dia seguinte, fiquei sabendo que o programa havia sido suspenso porque, no domingo anterior, os quatro protagonistas trapalhões cantaram “esse é um país que vai pra frente” enquanto andavam pra trás. Foi a primeira vez que ouvi (ou, pelo menos, entendi o que significava) a palavra censura. A partir daquele momento, as cores dos decalques “Brasil, ame-o ou deixe-o” nos vidros dos carros, passaram a me parecer particularmente sombrias, apesar de seus vibrantes tons em verde e amarelo.

A segunda situação de que me lembro nitidamente é ter ganho de presente de aniversário um LP. Para quem tem menos de 35 anos de idade, LP era um grande disco preto com um pequeno furo no meio que, em contato com uma agulha mágica, emitia sons, vozes e músicas. Aqueles que ainda não conseguiram visualizar adequadamente, imaginem um LP como uma pequena maquete do nosso planeta segundo a crença dos atuais terraplanistas. Pois bem, ao abrir meu aguardado presente (sinceramente não me recordo de qual artista), uma das faixas – sim, dava pra ver faixa por faixa – havia sido inteiramente riscada por algum material pontiagudo. Dessa forma, nem a mais mágica das agulhas conseguiria desvendar sua música. Pedi à minha mãe que trocasse o disco pois ele estava estragado. Minha mãe sorriu e me disse que aquela faixa havia sido censurada e que todos os LP’s de todas as lojas estavam iguais àquele. Uma vez mais, a palavra censura aparecia para impedir as minhas próprias decisões.

Quem essa tal de censura pensava que era? Que direito ela tinha de determinar o que eu poderia ou não ver e ouvir? Àquela altura, eu somente admitiria que meus pais exercessem tal papel. Mesmo assim, esperaria que qualquer proibição imposta viesse acompanhada de explicações e, acima de tudo, de espaços para contra-argumentações. Mas a censura não agia assim. Nem com amor e muito menos com liberdade de manifestação. Felizmente não tive que conviver com ela por muito mais tempo. A irritação que já tomava conta de mim passou a dominar a maior parte da população brasileira e, enfim, as pessoas perceberam que liberdade era um bem absolutamente precioso. E a censura foi banida do Brasil.

Mais de trinta anos se passaram e, por mais absurdo que pareça, a censura resolveu mostrar sua cara novamente. Assim como antigamente, ela vem travestida de legalidade, fantasiada de combatente da mentira, disfarçada de detentora da verdade e da justiça. Diferentemente de suas roupas coloridas do passado, a censura aparece vestida de preto. Sombria como sempre, agora pelo menos não esconde suas verdadeiras cores. Pobre censura, não tem ideia de onde está se metendo. Mesmo que muitos de nós ainda mantenham a torpe e hipócrita atitude de selecionar qual voz pode ou não ser calada, a verdade é que a grande maioria dos brasileiros não admite mais ver cerceada a sua liberdade de escolha e de expressão. E deixará muito claro à nossa velha conhecida que sua presença não é mais tolerada. Nem de brincadeira, nem por nostalgia, nem por um breve instante de recaída. Porque nenhuma censura tem moral, seja no singular ou no plural, suficiente para nos fazer esquecer do grande mal que sua presença nos causou. Canções não serão mais proibidas, vozes não serão mais caladas, reportagens não serão mais rasgadas. Não mais. Não aqui!

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