Ele nasceu certo de que iria ultrapassar os limites de seus vales, curvas e leitos. Não satisfeito em embalar quem por ele navegava, tornou-se música, e passou a desfilar pelos salões erguidos em suas margens. Desde então, faz bailar até quem ainda não o conhece. Quem dele se aproxima, quem contempla seus reflexos, passa também a reconhecer as notas de seus borbotões, os allegros de suas corredeiras, os adagios de seus remansos. Filho de rio que sou, encanto-me com os andamentos perfeitos que seus meandros descrevem.
No nascedouro, a consciência de que seu destino era seguir em frente.
Seguir, seguir…
Guardiã de seu berço, a negra floresta faz das cores seu primeiro afago.
Nascer, brotar…
Negro também é o mar que o aguarda, ávido pela doçura de sua seiva.
Morrer, findar…
Marcha – altivo – por terras teutônicas, como um exército que a várzea invade.
Avança, em paz…
Na Áustria, torna-se valsa. Apesar das verdes águas, de outra cor é chamado.
Azul, azul…
Assim também passou a se sentir: o rio azul. Embora tenha sido um vienense quem lhe deu a alcunha, Viena não o acolheu devidamente. Ao contrário, é um mero canal feito pelo homem o responsável por levar suas águas para mais perto dos salões onde é tão apreciado. A música, ali, é mais presente que o próprio rio. As notas ressoam mais alto que os mirantes. Os acordes abafam o gorjeio dos pássaros à procura de alimento. A audição suplanta a contemplação. Sentindo-se mero coadjuvante, o rio verde parte em busca de destinos mais acolhedores.
No percurso pela Eslováquia, começa a perceber o quanto seu caminho é fértil e produtivo. Pequenas aglomerações de casas, templos e castelos debruçam-se para admirá-lo. Bratislava aproxima-se de suas margens, mas – assim como Viena – não se volta para ele. Apenas o velho forte, do alto da colina que o margeia, continua prestando-lhe homenagens diárias. Um sussurro de agradecimento que a orla não consegue ouvir. A pequena capital envolve o rio, mas não o abraça. Ainda verde, continua seu caminho.
Em uma última tentativa de se encontrar, dirige-se ao sul e conhece a Hungria. Adentra Budapeste, e toda a cidade perfila-se para reverenciá-lo. Ao anoitecer, palácios, edifícios e monumentos brilham para que o rio possa visualizar seu curso. Suas margens tornam-se ponto de encontro e o rio entende, finalmente, o quanto sua existência é capaz de modificar a vida de toda uma comunidade, de todo um país. Os parques de ambos os lados tornam-se mais verdes, os bondes repetem as curvas de suas bordas, as bicicletas apostam corrida com a correnteza, as pontes assistem – iluminadas – ao seu desfile. O rio recebe o abraço que tanto aguardara. E assim, envolto em uma felicidade nunca antes experimentada, ele percebe que suas águas mudaram de cor. São agora de um azul intenso, quase mágico. Um azul ainda mais belo do que a célebre valsa que, a partir dali, o Danúbio também começa a cantarolar.