Uma família de ingleses visita o Brasil, aluga um carro, sai do Rio em direção ao litoral sul fluminense e entra por engano em uma favela de Angra dos Reis. O motorista para e pergunta a um morador, com o auxílio de mímicas, onde ele poderia comprar água para suas filhas. O morador imediatamente os avisa do perigo que correm e pede que saiam da comunidade o mais rapidamente possível. Os ingleses, que não falam português, são incapazes de entender o alerta do morador e o motorista prossegue seu percurso dentro da favela. A mensagem não compreendida só fica clara quando seu carro é alvejado pelos tiros dos traficantes, e sua mulher baleada no abdômen. Com muita sorte, eles conseguem fugir dali e a esposa sobrevive. Será que, em uma próxima viagem, esses mesmos turistas vão aprender português antes de visitar o Brasil novamente ou, simplesmente, optarão por um país no qual o fato de não conhecerem a língua local jamais possa fazê-los voltar para casa dentro de esquifes?
No final de junho, uma mulher grávida com quase nove meses de gestação foi atingida por uma bala perdida durante um tiroteio na entrada de uma favela da baixada fluminense. A bala perfurou os pulmões de seu bebê, até então absolutamente saudável, e o fez agonizar durante algumas semanas, até que não mais resistiu e morreu. A mãe a quem foi negado o direito de dar à luz seu próprio filho é brasileira, fala português, e sempre soube dos riscos de se viver em um país no qual os chefes do tráfico ditam normas, fazem leis e têm representantes em todas as esferas de governo. Diferentemente dos ingleses, para essa mãe, voltar para casa não faz com que ela se sinta segura. Ao contrário, voltar significa estar ainda mais perto daqueles que destruíram seus sonhos, suas esperanças, sua vida. Mas, que escolha ela tem?
Casos como esses ocorrem dezenas de vezes a cada dia no Brasil. Ocorrem com tanta frequência que nem damos a eles a devida atenção, a merecida repulsa, a justa indignação. Mas as vítimas que falam português, na imensa maioria das vezes, não têm a quem recorrer nem para onde voltar em segurança. O estado que deveria lhes amparar não é capaz de garantir o mínimo necessário para que elas voltem a se sentir em casa, não é capaz de lhes dar sequer a falsa sensação de que tais eventos são esporádicos e jamais voltarão a ocorrer. A maior parte de seus compatriotas apenas se degladia, de acordo com os interesses da ocasião, culpando ou eximindo de culpa o governo, a polícia, o bandido, a sociedade, o sistema ou até a própria vítima. As mesmas atitudes e interesses se repetem na cobertura que as diversas mídias procuram dar aos casos de maior visibilidade. E aqueles poucos que realmente buscam propor soluções para um problema tão crônico são massacrados pelas correntes ideológicas retrógradas, dominadas pela ditadura do “politicamente correto” ou pela truculência do “olho por (muitos) olhos”. Pobre país sem rumo…
Enquanto isso, a vítima que tem a sorte de sobreviver e de voltar pra casa, continua sendo desamparadamente identificada, catalogada e transformada em números estatísticos ou em reportagens de televisão, ao mesmo tempo em que lamenta, cada vez mais, sua capacidade de entender tudo o que os demais brasileiros dizem a seu respeito!