No último sábado, a cidade americana de Charlottesville foi palco de um episódio deplorável. Episódio que foi condenado com veemência pelo mundo inteiro. Embora eu saiba que existam, não conheço pessoas que tenham aplaudido ou defendido as bandeiras da intolerância, do ódio, do ultranacionalismo, do segregacionismo e da xenofobia levantadas por um grupo de neonazistas que marchou pelas ruas levando violência e morte aos moradores de uma das mais pacatas cidades da América, e mostrando ao mundo, mais uma vez, que estamos a anos luz de nos tornarmos sequer um rascunho do que entendo ser, verdadeiramente, uma sociedade, uma coletividade, uma comunidade.
Embora o mundo tenha se aproximado da unanimidade na desaprovação do fato, as interpretações dadas a este continuam desnudando a pequenez das divisões ideológicas que marcam nosso tempo. Hoje, a grande preocupação da maior parte das pessoas não é entender o que tem levado tanta gente ao extremismo. O que importa para estes é encontrar os culpados na ideologia oposta. A esquerda afirma que o nazismo é um movimento de direita. A direita, por sua vez, argumenta o oposto. Cada lado se satisfaz acusando o outro e se esquece, convenientemente, que ambos vivenciaram (e ainda vivenciam) inegáveis experiências nem um pouco democráticas. E, enquanto perdemos nosso tempo com uma dicotomia pobre, limitada e mesquinha, não conseguimos perceber que o verdadeiro problema continua intocado. Ao invés de falarmos sobre direita e esquerda, deveríamos estar buscando entender porque o autoritarismo vem ganhando terreno em um universo no qual a democracia deveria estar consolidada. É essa a discussão que deveria estar ocorrendo. É a liberdade que está em perigo. O extremismo não escolhe lados, a autocracia não é exclusividade de uma única ideologia, Deus não está de um lado e o diabo do outro. Aliás, na minha opinião, as duas extremidades levam, inevitavelmente, às portas do mesmo inferno.
Não consigo deixar de perceber uma imensa hipocrisia naqueles que condenam os ataques na Virginia enquanto defendem o regime ditatorial em curso na Venezuela, ou enquanto idolatram Fidel e Che, ou enquanto encontram justificativas para os massacres de Stalin, Mao e tantos outros. Da mesma forma, não posso compreender como alguém pode se mostrar realmente indignado com as atitudes racistas dos manifestantes, enquanto incentiva uma segregação baseada na desigualdade social, enquanto encontra justificativas para as práticas de tortura, enquanto aplaude as chacinas recorrentes. Todos exemplos clássicos de uma autocracia cada vez mais presente no dia a dia do mundo.
Se uma parte da sociedade tolera se submeter a uma ditadura, apenas porque esta atende às suas doutrinas ideológicas, fica claro que, para estes, o conceito de liberdade jamais foi compreendido. Se parte de um povo acredita que apenas os seus iguais são dignos de compor a sociedade que almejam, fica claro que, para estes, a liberdade não passa de um conceito próprio, vago e abstrato. E, enquanto a maior parte da população não souber realmente do que se trata e o quão importante é a liberdade, conflitos infernais como os de sábado continuarão a ocorrer e, infelizmente, continuaremos discutindo apenas qual era a cor da roupa que o diabo usava enquanto a barbárie acontecia. E que Deus não se meta!