Quando escrevo, procuro sempre evitar as repetições, sejam de palavras, expressões ou até mesmo de sinais de pontuação. A não ser, evidentemente, quando a repetição é proposital e busca ressaltar uma ideia ou opinião. Detesto, por exemplo, escrever usando aspas em excesso. Explico. Naturalmente, uso as aspas para delimitar citações ou títulos em geral. Até aí, nenhum problema. Mas, claro, as utilizo também quando minha intenção é exprimir ironia ou sarcasmo. E é esse o ponto que realmente me incomoda. Quando um assunto me irrita em demasia, tendo a ser mais irônico e as aspas se multiplicam. Não me agrada escrever dessa forma mas, muitas vezes, simplesmente não tenho como evitar.
“Não as use” (olhem elas aí!), alguém poderá dizer. “Deixe que a interpretação de cada um se encarregue de perceber, ou não, a sutileza da sátira”. Maravilha, perfeito, concordo plenamente. Aliás, busco me valer desse princípio sempre que posso. Mas, e quando o que está se tornando senso comum é justamente o que me irrita? Quando a frase dita ou escrita me deixa tão indignado que gosto de repetí-la exatamente como a li ou ouvi, usando as aspas para destacar apenas a palavra ou expressão que a torna, no meu entendimento, verdadeiramente absurda?
Querem um exemplo? Li ontem que “as marchinhas de carnaval com conteúdo ofensivo estão sendo banidas do repertório da maioria dos blocos que irão desfilar pelo país”. Nada a ser destacado aqui, não é? Mas, quando leio que o tal “conteúdo ofensivo” (não tem como evitar, perceberam?) inclui clássicos como “Maria Sapatão”, “Cabeleira do Zezé”, “O teu Cabelo não Nega, Mulata”, “A Pipa do Vovô” e outros “atentados” às minorias, vejo que não posso suprimir nenhuma das aspas. Na verdade, as aspas começam a me parecer absolutamente insuficientes. Tenho que me controlar para não começar a usar o itálico, o negrito e as fontes em vermelho, tudo junto!
Outro exemplo: há dois dias, o assunto mais discutido nas redes sociais era a tal da “apropriação cultural”. Essa expressão é tão imbecil que deveria vir obrigatoriamente acompanhada de aspas, não importa em qual frase estivesse inserida. Como é que alguém se julga porta-voz de um grupo que, por sua vez, se acha dono de uma cultura que não permite inspirações ou compartilhamentos? Especialmente no mundo globalizado em que vivemos hoje? Paciência tem limites! Já as aspas, parece-me que não.
As empresas de recursos humanos passaram a determinar que o próximo menor aprendiz que alguém contratar passe a ser chamado, daqui por diante, de “jovem aprendiz”, para não contaminá-lo com uma denominação que possa marcá-lo como um ser inferior. Sério, ninguém aguenta mais isso. Haja aspas!
Já neste ano que mal começou, uma empresa de engenharia demitiu um estagiário porque este postou na sua rede social que estava à espera das feministas para descarregarem um caminhão de cimento que havia chegado na obra. E a empresa veio a público para afirmar que a demissão ocorreu porque sempre exigiu de seus funcionários o respeito às diversidades. Mentira! O motivo não foi esse. A empresa se “retratou” (como se tivesse alguma coisa com isso) apenas para se adequar ao insuportável “politicamente correto” (outra das expressões que deveriam vir sempre acompanhadas de aspas) que domina a sociedade atual. Mas o estagiário, certamente, se lembrará para sempre da primeira lição de sua vida prática. Daqui por diante, ele vai pensar de uma forma e agir de outra. É o culto à hipocrisia, é a valorização da superficialidade em detrimento da essência, é a vitória daquele amigo falso que costuma sorrir na sua frente e te ferrar pelas costas. Ferrar sem aspas nenhumas para amenizar o ato.
Antigamente, as “regras” do mundo eram mais claras. Antigamente, as pessoas dançavam ao som de “Maria Sapatão” e “Cabeleira do Zezé” sem nenhum sentimento de homofobia, e todo mundo sabia que era brincadeira. Antigamente, as crianças cantavam “Atirei o pau no gato” e as estatísticas de gatos maltratados não aumentaram por conta disso. Antigamente, os comediantes eram livres para contar piadas sobre o assunto que quisessem e os escritores tinham autonomia para criar seus personagens sem se preocuparem com os estereótipos que estariam criando ou reforçando. Antigamente, meus colegas eram livres para me chamarem de magrelo, de quatro-olhos, e eu tinha estrutura psicológica para levar na brincadeira ou para superar, mais cedo ou mais tarde, o que me incomodava de verdade. E essa superação me ajudava a crescer.
Não havia regras para me proteger. E é uma tremenda ilusão pensar que, hoje, essas regras existem. As regras do “politicamente correto” não protegem ninguém. Ao contrário, elas afastam as pessoas delas mesmas. Ninguém se conhece mais. Pior, ninguém sabe mais como se conhecer. E aqueles que pensam saber, na verdade não são realmente capazes de se aceitarem plenamente. Eles só são capazes de reconhecer suas próprias “identidades”. Assim mesmo, entre aspas!