Chico Buarque acaba de proibir a utilização de sua música “Roda Viva” na abertura do programa homônimo da TV Cultura. Disse que se sentiu “desconfortável” com o tom ameno da entrevista feita com Michel Temer na última segunda-feira e, de resto, com a linha adotada pelo programa nos últimos tempos. Parece não haver um contrato firmado entre emissora e compositor, portanto, ele está no seu direito de autor da obra.
Em março deste ano, Chico já tinha retirado a permissão que havia concedido para a utilização de suas canções em um espetáculo chamado “Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 minutos”, depois que uma parte da plateia simplesmente impediu a continuidade de uma das apresentações devido ao teor de um dos monólogos que emolduravam as canções interpretadas. O monólogo, feito pelo autor da peça, falava de um país cuja presidente era desonesta. Naquela noite, após o início das manifestações, o autor pediu que os espectadores indignados se retirassem e que passassem na bilheteria para que o valor pago pelo ingresso lhes fosse devolvido. Mas eles se recusaram a sair e não permitiram que a peça continuasse, mesmo que a maioria dos presentes (entre eles, alguns amigos meus) ainda quisessem assistir ao restante da obra. Saíram triunfantes do teatro afirmando que acabavam de impedir um ato de fascismo. Eles, assim como o Chico, talvez tenham se esquecido de que, muitas vezes, é extremamente tênue a linha entre o desejo de fazer valer a sua verdade e a mera censura velada.
Esses episódios evidenciam, na minha opinião, uma característica clara da personalidade de Chico Buarque. Obviamente, ele nunca quis que suas canções fossem adotadas por pessoas com ideologias diferentes das dele. Percebo agora que, em suas composições, quando falava de liberdade, se referia apenas à liberdade dos que pensam exatamente como ele. Os demais que se calem, ou que sejam calados. Quando ele elaborava letras magistrais que disfarçavam uma crítica ácida e contundente à ditadura, seu desejo era se fazer ouvir de tal maneira, que apenas a sua própria verdade e a de seus pares prevalecesse e fosse validada. Quando ele exaltava o amor, se referia apenas ao amor entre os seus iguais, pois, em seu íntimo, só eles são realmente capazes de amar. Quase como uma casta exclusiva cujos não-membros só conhecem o ódio. Que tristeza perceber que tantas músicas marcantes na vida de inúmeras pessoas foram compostas, na verdade, apenas para algumas poucas. Que tristeza perceber também que essa impossibilidade de controle sobre sua própria obra realmente incomoda o compositor. Que ele gostaria de ter o poder de confiscar os discos, apagar os momentos marcantes que suas músicas embalaram, sequestrar as emoções que, equivocadamente, foram experimentadas durante tantos anos pelos incautos de opinião divergente.
É difícil conseguir me desvencilhar de várias das canções que marcaram minha vida. Ainda envolto na memória de tantas letras inesquecíveis, tenho, entretanto, algumas sugestões a fazer a este novo Chico desvendado. Sugestões de destinos para algumas de minhas composições favoritas, cuja admiração, agora sei, jamais trouxe alegria ou orgulho ao poeta. Afinal, elas não foram escritas para pessoas como eu. Espero, portanto, que o Chico encontre irmãos de pensamento aos quais ele possa delegar definitivamente os direitos de suas canções. Sugiro que, daqui por diante, o samba “Apesar de Você” passe a ser sempre cantado nas aberturas das convenções anuais do PT. Que “Construção” passe a ser o novo hino da Construtora Odebrecht. Que “Mulheres de Atenas” seja adotada como símbolo da liberdade feminina em países progressistas como Cuba e Venezuela. Que “Cálice” seja a música de abertura dos programas independentes e imparciais dos jornalistas Paulo Henrique Amorim e Mino Carta. Que “Olhos nos Olhos” seja cantarolada a cada depoimento feito à Polícia Federal, pelos políticos presos ou sob investigação. Que “Vai Passar” seja a música oficial dos membros do ParTido que esperam ansiosamente pelo fim da Lava Jato. Que “Geni e o Zepelim” não tenha outra guardiã a não ser a nossa inesquecível ex-presidenta. E que, claro, Lula perceba o quanto foi bem retratado na genial canção chamada “Meu Guri”, embora, neste caso, fique evidente que, na realidade atual do Brasil, infelizmente as mães dos bandidos não são mais as únicas a tentar protegê-los!