“O dia amanheceu como amanhecem todos os dias. Pela primeira vez, todavia, o vi com olhos diferentes. O azul do céu estava mais celeste; as nuvens mais belas; o arvoredo mais verde, em todas as suas tonalidades. As barrancas do meu leito estavam mais amigas, mais identificadas comigo. O sol era risonho… como risonha seria a chuva, se porventura chovesse. O que havia de diferente, na verdade, não era com o que me cercava. Diferente estava eu. Eu via tudo com mais amor.
Então compreendi.
A serenidade absoluta se aproximava. Não que a visse… seria impossível. Mas, a sentia. Por longo tempo da minha vida caminhei, acompanhado pelo sol, pela lua, pela chuva, pela brisa. Conheci pássaros e animais silvestres. Convivi com os homens. Com tudo e com todos aprendi muito.
Nunca manifestei cansaço ou ansiedades. Apenas caminhei o caminho que me estava reservado, aproveitando as lições da vida.
Mas, eu sentia que minha hora se aproximava. Meus remansos eram maiores e meu corpo se alargava, na medida em que as profundidades do meu leito cresciam.
De repente, aconteceu. O turbilhão que me envolveu, batendo-me e rebatendo-me, em nada abalava a minha paz, a minha tranqüilidade. Continuei andando. E fui envolvido por uma atmosfera de absoluta serenidade. Nada do passado. Nada no futuro. Somente aquela sensação de felicidade total, de não relacionamento com o que quer que fosse. O silêncio era absoluto. E eu parei… não uma parada de remanso, a que já me acostumara em toda a minha vida – momentos em que eu mergulhava no fundo de mim mesmo e desfrutava a plenitude do conhecimento e da contemplação e saboreava a paz.
A parada, eu a senti definitiva.
Não era o fim, todavia. Era a morte, mas não era o fim. Era a morte para tudo quanto eu conhecia: corredeiras, remansos, raseiras, praias, barrancas, montanhas, arvoredos ciliares. Era a morte para tudo quanto eu me acostumara ao longo do meu percurso… ao longo da minha vida. Era a despedida para o brilho do sol ou para a clara suavidade da lua; era o não mais retornar ao perfume das flores ou aos sons maviosos dos pássaros; era esquecer o convívio com os animais da terra e os obstáculos do meu leito. Mas, eu sentia todo o conforto na transição. Eu mergulhava e mergulhava. E me fortalecia. Era a integração total; era o sabor da felicidade plena, quando eu me via inteiro, desde o dia em que brotei entre aquelas pedras cobertas de verde musgo, cresci, engordei, corri, caí, superei obstáculos, engoli seres viventes, enfrentei desafios, me debati, fui criticado e elogiado, sofri injúrias e agressões – e a tudo isso, fatos tristes ou alegres, respondi com a serenidade de quem cresce, evolui e se realiza. E a felicidade pelo cumprimento dos deveres que me ditara o Pai transfigurou-me. Já lançado em maior profundidade no mar, eu me via inteiro. Seria capaz de descrever cada curva do meu caminho. Eu repassava, num átimo, o conhecimento acumulado. E sentia que a melhor verdade que eu aprendera era o perdão. Não o perdão a quantos me fizeram males físicos, aos agressores da natureza. Mas, o principal, o único, o essencial: o perdão a mim mesmo. Tudo quanto acontecera na minha vida não tinha qualquer significado. Só tem sentido o que eu sou! Tudo quanto a mim me perdoara – e estava enterrado no ontem – contribuíra decisivamente para a minha felicidade. Infeliz quem não se perdoa. Erros todos cometem. Mas, o erro não é bagagem a ser carregada pela vida afora. Assim como os sucessos também não o são.
Veio-me a segunda grande verdade: o caminho é a vida. O fim é apenas sublimação. O caminho é o crescimento, é o aprendizado, é a evolução. O fim é apenas a integração. Por isso não devemos ter pressa. Por isso não devemos buscar metas. Estas devem balizar, como objetivos de vida, o caminho. Não se pode esquecer, todavia, que todo sonho fica sepultado na realização. Alcançar o fim é tão somente satisfazer o objetivo. Experimentar e crescer são as lições do caminho. Neste se encontra o verdadeiro sentido da vida, porque enriquecido pela alegria, pela dor, pela ira, pela bondade, pela revolta e pela harmonia. As metas não são a felicidade. A vida está no caminho que se cria e que se percorre… não no fim dele. Felicidade é experimentar, é aprender, é evoluir, é saborear cada instante na sua plenitude.
E percebi que o mar fluía do meu corpo etéreo, na medida em que perdia consciência da unidade para adquirir o conhecimento da integração. E nessa indefinível transmutação, ressoou minha voz que dizia a oração da minha vida:
“Pai, Senhor do Universo. Você que me concedeu nascimento, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, antes de crescer, idealizar e intuir os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade.
Pai, Senhor do Universo. Você que me concedeu vida e crescimento, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, cumprindo minha missão, identificá-la com os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade.
Pai, Senhor do Universo. Você que me concedeu conhecer o bem e o mal, verso e reverso da mesma medalha, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, antes do discernimento entre as duas faces da medalha, cumprir os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade.
Pai, Senhor do Universo. Você que me concedeu o livre arbítrio para a escravidão telúrica ou para a evolução do espírito, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, antes de qualquer opção, cumprir os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade.
Pai, Senhor do Universo. Você que me concedeu a morte, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, depois dela, integrar-me na Suprema Energia, por haver cumprido os seus desígnios e satisfeito a sua santa vontade.”
Aí, então, compreendi o amor.
Entendi, na sua inteireza, na sua totalidade, o que é amor. Tudo o que eu fizera na minha vida, todo o meu percurso, toda a fertilização… tudo; tudo não passava da mais simples e pura expressão do amor. Eu sempre estivera disponível. Eu sempre fora, desde o nascimento, doação total. Jamais fui maculado pelo egoísmo. Tudo o que fizera na vida, desde aquela grota de pedras cobertas de verde musgo, era amar. Amei inteira e amplamente, numa doação plena a todos e a tudo. Amei espinhos, assim como amei flores. Jamais possuí, em nome do amor. Amei as pedras, os arbustos, as minhas barrancas e minhas praias. Amei o sol e a chuva. Amei o orvalho da manhã, o calor do sol, a suave claridade da lua. Amei naturalmente; porque o amor não é emoção… é muito mais: alcança o zênite da contemplação e a sublimidade do servir. Amei sem distinções, sem escolhas, sem preferências. Amei sem restrições, sem limitações, sem preconceitos e sem medos. Entreguei-me ao mundo, à minha missão, ao meu dever, ao meu lazer… entreguei-me à vida.
Amei. E por isso fui amado igualmente, com a mesma intensidade… sem limites. Porque o amor é energia pura, é energia cósmica que se propaga em todas as direções; e se multiplica em escala geométrica; e ecoa; e volta. E cresce ainda mais. Ilumina o mundo.
Se os homens pudessem entender minha vida, possivelmente não me rotulariam RIO. Ou, talvez, teriam este nome como sinônimo de amor.
Era chegado o momento da última revelação: o renascer.
Eu poderia, se não aproveitadas as lições de todo o curso da minha vida, renascer fisicamente. E então, sugado pelo sol, transformado em nuvens e chovendo sobre a montanha, poderia brotar naquele lindo e agreste “olho d’água”. Ou em qualquer “olho d’água” do mundo, para deslizar sobre a mesma terra, reconhecer barrancas, criar novas curvas, abraçar outros cascalhos, cantar outras canções de correr ou ouvir o silêncio profundo dos remansos. E, se assim fosse, eu guardaria a semente de toda a evolução anterior, e poderia crescer ainda mais em conhecimento e amor e, um dia, alcançar a integração com o Todo.
Ou poderia renascer pelo espírito, sagrando-me no sal das águas do mar, desde que o meu amor superasse as fronteiras dos preconceitos e das limitações físicas, e se tornasse cósmico. Aí, sim, desobrigado do círculo do renascimento físico, poderia baixar às profundezas abissais, poderia elevar-me a alturas inimagináveis, poderia conhecer outras moradas do Pai e, a seu serviço, poderia continuar a transformar, pelo crescimento, não apenas a Terra… mas todo o Universo.”