“Eu estava bastante acelerado. Já há algum tempo, por força da constante declividade do terreno, eu vinha crescendo meu ritmo.
Uma curva à direita.
Uma longa… quilométrica reta! De repente, uma queda abrupta e, em seguida, várias outras menores. Logo após o meu corpo se transformava em corredeira forte e traiçoeira.
O arvoredo marginal era frondoso, vegetação luxuriante, magnificamente trançada. Certamente nenhum ser humano pisara aquele trecho. Uma variedade enorme de aves, de coloridos alegres e sutis, e animais silvestres pouco comuns, faziam uma algazarra tipicamente domingueira… tudo, cenário e sons, de indizível beleza… numa saudação festiva ao raiar do dia.
Aos poucos fui refreando meu ímpeto. Acomodei-me ao leito, cuja declividade já era muito mais suave. As profundidades foram crescendo… cada vez maiores. Gradativamente fui desacelerando a corrida.
Logo adiante o avistei. Pela primeira vez o vi assentado na barranca. Eu já o conhecia de várias outras pescarias… sempre acompanhado de bons amigos… barco a motor… tralha completa… tudo o mais.
Desta vez, no entanto, estava só. Próximo do seu rancho de pesca — ao qual se chegava através de uma precária e estreita estrada de chão batido — e sem descer ao ancoradouro onde se achavam atracados vários barcos. Aboletara-se ele numa pequena clareira da mata, num barranco, espécie de mini-promontório que declinava até uma praiazinha rasa de águas claras e areia branca.
Lançara iscas em minhas águas. Embora sofisticado em qualidade, usava leve material de pesca: varas finas, não obstante resistentes; linha trinta, nitidamente imprópria para espécimes de maior porte; carretilhas pequenas. Fisgava um peixe e, calmamente, o trabalhava, recolhendo e liberando linha, até trazê-lo à raseira, costado fora d’água, barriga roçando a areia clara. Descia do barranco controlando a presa. Apreciava-o. Detinha-lhe os movimentos prendendo-o pelo rabo; retirava-lhe o anzol da boca e, lentamente, o soltava. O peixe ainda ficava ali… na raseira… parado… presumindo-se de alguma forma preso. Até que, com movimentos suaves — o instinto alertando-o contra o perigo, embora já agora ultrapassado — avançava um pouco… um pouco mais… e, livre, deslizava nas águas límpidas e transparentes, para logo desaparecer nas profundidades maiores.
Esse procedimento repetiu-se várias vezes. Inclusive com espécimes nobres e de bom porte. Um único “pintado” — belo “moleque” de uns oito quilos — foi sacrificado: alimento para a família. “Bicheirado”, arrastado para fora d’água, foi preso pela boca num galho forte de árvore; corte longitudinal no rabo, para esvair o sangue e deixar a carne branca e pura. Tudo isto após o ritual de sempre: vinho tinto aberto, batismo do peixe com uma breve golfada por sua goela abaixo e, depois, a dose do pescador: prazer de degustá-lo, ele próprio.
E a partir daí, todos os demais fisgados, por mais belos e superiores espécimes, eram acariciados e, cuidadosa e prazerosamente, devolvidos ao seu “habitat”.
Havia serenidade no rosto daquele pescador. Perguntei-lhe qual era a sua verdade. E ele, em absoluto silêncio, respondeu-me:
“— Eu não acredito na dor do ontem. Acredito na dor, assim como na satisfação do hoje. Não acredito no riso ou no choro do amanhã. Não sei se terei a oportunidade de desfrutá-los ou sofrê-los.
Acredito na energia cósmica do Todo, capaz de reformar o Universo e tudo quanto nele se contém.
Acredito na serenidade interior, a mesma que você sabe saborear, quando mergulha em você mesmo e se identifica com a alma do rio. Acredito na evolução do homem e na de todos os seres vivos.
Penso que o homem da idade da pedra disputou, sem o uso da razão e sem maiores vantagens, lugar com os animais. Penso que, mais tarde, despertada a inteligência, aproveitou melhor os instintos que desenvolvera, e sobrepujou os irracionais. Penso que, gradativamente, ainda por força da inteligência embrionária, distinguiu o homem os seus sentidos. E usou-os para manter e aumentar sua supremacia sobre os demais seres vivos. Formou núcleos familiares; criou normas e preconceitos. Ampliou seu relacionamento além do núcleo familiar — criou mitos. Saboreou o comando tribal — criou embrionariamente o Estado. Inebriou-se com o poder — criou a política.
O que era da terra, porém, não lhe bastava. Evoluiu; criou explicações que visavam a justificar seu poder de vida e morte sobre os outros seres e até sobre seus semelhantes, fundadas na sua natureza superior de ser inteligente.
Cresceu mais e mais.
Evoluiu além das religiões. Alguns, muito além: do Lúcifer (portador da luz)* alcançaram o Logos (sabedoria pela razão)*. Penso que o homem, assim como todos os demais seres vivos que habitam este pequenino planeta Terra, são consciências em evolução, em busca de sua integração com o Todo. Integração que somente se alcança através do amor.
Acredito que nada… absolutamente nada no mundo acontece por acaso. Um cascalho não rola da barranca para dentro do rio sem que haja o comando e o desígnio da Energia Superior.
A não ser as ações do homem, que possui o dom de usar (e, às vezes, lamentavelmente, de abusar) do seu livre arbítrio — sempre sofrendo ou gozando as conseqüências dessa faculdade — nada mais no mundo acontece por acaso. Eu creio nisso.
Creio na Energia Cósmica, que alguns chamam Todo, outros chamam Deus e alguns poucos chamam Pai.
Por isso que acredito no amor, que é a única forma, para nós inteligível, de expressão da Energia Superior. Amor desinteressado, puro, universal, que nunca exige ou pede retribuição ou recompensa. Amor que se dá… porque esta é sua única forma de expressão: doação total. Amor que não escolhe, não distingue, não ofende e não se ofende. Amor que não se vangloria. Amor, sinônimo de Energia Suprema que governa o Universo.
Isto é o que eu penso… é o que eu creio”.
Eu já estava quase no fim da reta quando aquele pescador encerrou o seu silencioso e inarticulado credo.
Eu entendia, agora, porque ele não transformava sua pescaria em indiscriminado sacrifício de peixes. Eu entendia porque ele se bastava, sozinho, no barranco do rio. Eu entendia porque seu lazer e a sua alegria eram naturais, contidos e quase silenciosos. Eu entendia porque em cada sofrimento de sua vida (não há quem não os tenha), ainda que lhe custasse lágrimas, ele se mantinha discreto, reservado e sereno.
Nós dois sabíamos que TUDO na vida passa. Não há mal que nunca acabe; nem bem que sempre dure – mas, há sempre evolução para quem a ambos aproveita.
Minha próxima curva também era à direita.
Segui meu caminho… em paz!”
Uma resposta a Outras preciosidades de “Caminho para o Mar…”