São três da manhã do dia vinte de janeiro de 2015. Daqui a poucas horas estarei velando o corpo do ser humano mais iluminado que conheci em toda a minha vida. Uma pessoa tão bondosa que conseguia transmitir, em um mero sorriso, toda a grandeza da sua alma. Quando ele sorria, as pessoas retribuíam naturalmente, sem se darem conta de que aquele simples ato havia marcado para sempre as suas vidas. E ele sorria para todos da mesma forma, com o mesmo carinho e com a mesma espontaneidade. Nunca fez distinção alguma de classe, posição social, hierarquia ou qualquer outra. Seu sorriso sempre foi completo, íntegro, verdadeiro, escancarando a todos a pureza do seu íntimo, a dimensão da sua generosidade, a imensidão do seu caráter. Jamais soube o que é rancor, mesmo para com aqueles que o magoaram de alguma forma. Perdoava a todos com tal naturalidade que não conseguia mais se lembrar do que o havia machucado a princípio. Vivia sempre o momento presente, pois o passado e o futuro jamais lhe pertenceram. Tinha uma doçura tão evidente no olhar que sempre foi chamado pelos netos de “Vovô Doce”. E ele sempre foi mais do que um avô para cada um deles. Foi palavra, foi carinho, foi conselho, foi exemplo.
São três e quinze da manhã e entro nos quartos dos meus filhos. Beijo a face de cada um deles e rogo-lhes em silêncio que jamais se esqueçam do avô que acabam de perder. Coloco a mão de cada um deles junto à minha e me lembro de quando eu – pequeno – colocava a minha mão junto à do meu pai e ele me prometia: “amigos até nossas mãos empatarem”. Fisicamente, nossas mãos empataram e desempataram há muito tempo, e o que deveria ser “apenas” uma amizade eterna se tornou veneração, se tornou idolatria. O que parecia ser um futuro muito distante, se mostrou tão verdadeiro mas, ao mesmo tempo, tão breve. E não poderia ser diferente porque, acima de tudo, breve é a vida.
De repente percebo que, mesmo depois de tantos anos, não sei se eu realmente cresci ou se foi apenas a minha mão que aumentou de tamanho. Não seria de se esperar que, com o empate das mãos, todas as dúvidas, as angústias e as inseguranças estivessem superadas? Que os medos tivessem dado lugar às certezas? Que, ao colocar a minha mão junto às mãos dos meus filhos, eles também pudessem sentir toda a segurança que a do meu pai me transmitia? Hoje, por mais que eu tenha consciência de como é difícil conseguir atingir tal nível de autoconhecimento, sinto que minha mão ainda está longe de empatar com a do meu pai.
Apenas com a sua mão física eu consegui empatar, pai. A sua mão espiritual é grande demais para ser alcançada. Ou, talvez, a minha capacidade de crescimento tenha limitações que suas mãos jamais conheceram. Mas vou continuar tentando, eu lhe prometo.
São três e meia da manhã e deixo meus filhos dormirem em paz. Venho para a sala e agradeço em prantos a Deus por ter me permitido tantas bênçãos, a começar pela bênção maior de ser filho do homem extraordinário que deixou ontem este plano terreno. Um plano ao qual, na verdade, ele jamais pertenceu. Ele veio com a missão de tentar elevar um pouco o nível de consciência deste nosso mundo. E o fez com tal competência que Deus lhe permitiu continuar por aqui, mesmo muitos anos depois que o seu coração físico não tinha mais condições de sustentar seu próprio corpo.
São quase quatro da manhã e tento agora encontrar palavras que possam definir o que o meu pai significa pra mim. Nada mais impossível, pois não existem em língua alguma palavras que traduzam o amor mais pleno que poderia existir. A proximidade da aurora, entretanto, me traz a imagem daquele primeiro raio de sol que desponta no horizonte. Aquele que aponta o caminho para os demais o seguirem e, dessa forma, inundar a planície de luz. Meu pai sempre foi esse primeiro raio de sol. Foi também todos os demais que inundaram de luz a minha vida. Foi meu Norte, minha bússola, a estrela que me guiava de volta para o cais. Foi meu maior orgulho, meu herói imbatível, meu melhor amigo. Foi meu confidente mesmo quando eu nada lhe dizia, meu conselheiro mesmo quando o assunto não lhe era conhecido, minha referência mesmo quando optava por uma direção alternativa à dele. Foi a maior dádiva e o maior amor da minha vida.
São mais de quatro da manhã e percebo, pela primeira vez, o tamanho do vazio que a sua ausência me causa. Percebo também que, ainda maiores que a minha saudade, são os inúmeros exemplos que ele deixou, as inúmeras palavras de amor e confiança que ele me disse. Percebo que jamais conseguirei agradecer suficientemente por tudo o que ele fez e continuará fazendo por mim e pela família que criei à sua imagem. Percebo que estarei sempre de joelhos a seus pés, tamanha é a minha veneração por este ser de luz pura, de olhar doce, de sorriso aberto que tive a honra inacreditável de chamar de meu pai!
São quase cinco da manhã e o primeiro dia do resto da minha vida está só começando…