“De repente a queda! Altura? Nem sei dizer.
Sei apenas que não parecia ter fim. A velocidade era crescente. O deslocamento de ar provocava um turbilhão… e meu corpo inteiro se quebrava nas pedras e se espargia em gotas multicoloridas, vazadas pela luz iridescente do sol. O vento arrastava-me no ar e lançava-me numa cortina de fumaça diáfana sobre o arvoredo compacto que me cercava. O barulho que eu provocava era ensurdecedor, originado no meu embate contra a muralha de rochas sobre a qual me despencava. Eu não temia a queda. Eu não resistia ao desconhecido. Pelo contrário: senhor do meu destino, pela minha disponibilidade para a vida, eu permitia que toda a potência do meu corpo batesse firme e forte sobre as pedras, e corresse livre, revolto, formando uma esteira de espuma branca. Havia um fascínio na queda e na corrida. Ambas desenfreadas, livres, naturalmente belas. Eu me divertia com tudo aquilo. Fui criado para a felicidade… como todos os seres e todas as coisas o foram. E as quedas e as corredeiras fazem parte da minha vida e da minha felicidade.
Não havia medo na queda. Há muito aprendera que a realidade da vida não enseja o medo. Somente a mente humana é capaz de criá-lo. E é capaz de transformá-lo em obstáculo intransponível, em causa de desespero e agonia, mesmo quando não existem fundamentos concretos para temer. O homem é capaz de criar a ilusão do medo e é capaz de senti-lo como sendo algo palpável, visível, sufocante, real e irremovível. E sofre. E se esquece da felicidade de viver, muito embora nascido para ser feliz.
Minha queda livre, logo após o grande embate com a muralha de pedras, teve prosseguimento por um longo trecho de corridas fortes, de agitação violenta, de força indomável. Não era a primeira vez que eu despencava de muito alto, numa manifestação de energia e responsável busca do meu caminho. Já anteriormente, por diversas vezes, havia experimentado aquele mesmo frenesi que a surpresa causa, quando se sente, no âmago, todo o poder do desconhecido. Todo desconhecido é geralmente temido. Menos para quem tem respostas para ele. Respostas que vêm do âmago; que vêm da serenidade interior.
Como de hábito, logo a seguir eu retomava o meu caminho de paz, de adaptação à vida, em busca dos meus objetivos maiores e sublimados, que se cristalizariam na minha realização. Mais uma vez a natureza me dizia, na plenitude de sua sabedoria, que as quedas não são o fim. São, apenas, simples lições demonstrativas da perenidade da vida, a ensinar persistência, obstinação nos objetivos, caminho que conduz à felicidade. Queda é, tão só e como já dito algures, alavanca para o sucesso.
Eu sempre fui o retrato da vida. Transmito nas minhas quedas as dores; nas minhas corredeiras os temores; nas minhas curvas as buscas; nos meus remansos a meditação; nas minhas relações com a fauna e a flora os amores. Tudo o que a vida dá e tudo o que ela recebe retratados em mim. Desde cedo entendi que as dores são atalhos que nos repõem no caminho da evolução. Também já havia entendido que os temores só existem no consciente humano, assumindo a proporção que se lhes quiser emprestar. Esfumam-se, se encarados de frente. Desde cedo entendi que a busca da minha evolução estava na introspecção dos meus remansos e na atenção aos meus amores. Cumprir minha missão, meu trabalho, dando vida à fauna subaquática e fertilizando a flora ciliar seria a sublimação do amor. E assim agindo, meu caminho estaria abençoado pelo Pai e a minha realização estaria completa.
Meu objetivo, soube-o desde tenra idade, era o mar… e o meu caminho era divino e único: somente eu poderia percorrê-lo. Somente eu poderia aprender a criá-lo e com ele aprender a viver. Somente eu poderia experimentá-lo e saboreá-lo. Somente eu poderia crescer e evoluir… desde que soubesse aproveitar minhas vivências. Este o ensinamento que eu guardava e alentava desde muito. Desde pequenino… desde minha infância.
Minha infância… minha história…”
Assim começa “Caminho para o Mar”, um livro precioso que meu pai escreveu há mais de dezesseis anos. Seria muito simplista da minha parte dizer que este livro sintetiza quem foi Fernando Viegas Marinho. Meu pai foi muito mais complexo e mais singelo, mais denso e mais suave, mais explícito e mais enigmático. Meu pai foi muito mais do que qualquer mensagem ou pensamento, mesmo aqueles ditos ou escritos por ele mesmo. Meu pai foi único e inigualável! De qualquer forma, “Caminho para o Mar…” é uma pequena amostra tanto dos pensamentos e valores com os quais meu pai comungava quanto da doçura com a qual ele expunha as suas verdades. Tive a oportunidade de escrever o texto abaixo na contracapa do livro, publicado no ano de 2008 com a ajuda inestimável dos amigos Márcia Soares e Iasid Bedran, dois dos muitos anjos que o ajudaram na concretização de sua missão neste plano:
“Ao longo de nossas vidas, deparamo-nos constantemente com diversas oportunidades de aprendizado e de crescimento. Na maior parte das vezes, essas oportunidades nos passam despercebidas. Outras, só são assimiladas muito tempo depois, quando adquirimos maturidade suficiente para compreendê-las. E poucas, muito poucas, conseguem imediatamente atingir nossas almas. Assim é a mensagem de “Caminho para o Mar…”.
Escrito com extrema docilidade, “Caminho para o Mar…” é uma história de amor – condição primordial para se completar qualquer caminhada. É também a história de um rio evoluindo ao longo do seu próprio caminho. Um entre tantos outros rios, mas único na sua essência. Um entre tantos outros caminhos, mas que só esse rio poderia percorrer. É uma história que não pretende ditar regras ou estabelecer verdades. Ao contrário, quer mostrar que cada rio cria seu próprio leito, tem suas próprias margens e irriga seus próprios vales. Mas conta, acima de tudo, a história de uma busca latente em cada átomo do Universo: a união da parte com o Todo, a fusão da energia com o Cosmos, o encontro do rio com o Mar…”
O indescritivelmente maravilhoso rio que foi o meu pai acaba de mergulhar definitivamente no Mar que ansiosamente o esperava. Que sua mensagem, sua história e seus exemplos possam continuar inspirando diversas almas em busca de conhecimento, de verdade e de evolução! Por isso, vou continuar publicando, nos próximos posts, outros trechos desse livro, no intuito de mostrar, mesmo que apenas de relance, a grandeza da alma que agora desfruta da paz e da serenidade do oceano em que se encontra, depois de ter feito de sua jornada, o mais generoso, fértil e disponível de todos os cursos d’água!
2 respostas a Primeiras preciosidades de “Caminho para o Mar…”