Alfarrábio…

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Papel de segunda linha, capa com cores desbotadas, recortes mal feitos. A encadernação não primava pelo capricho. As orelhas limitavam-se a pequenas dobras das abas, e nelas não cabiam frases. A lombada carecia de título, a folha de rosto se esquecera do autor. Ninguém pagaria um centavo por aquele exemplar. Entre tantos mais vistosos, leitor algum o escolheria na prateleira da estante. As palavras ali contidas nasceram fadadas ao desapreço. Severino sabia disso quando as escreveu…

PREFÁCIO

“A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância” – escreveu um tal Guimarães que conhecera entre uma e outra andança. O sentido da frase lhe escapou. Ficou o gosto pela sonoridade e o perfume do fumo de rolo, testemunha do encontro. Jurou um dia ser capaz de escrever bonito assim.

PRÓLOGO

O sertão mineiro era estéril feito gota de esperança. A aridez da terra endurecia até os corações mais úmidos. Se o céu não aprendeu a chorar, não eram os olhos da cabocla que haviam de lhe ensinar. Seus pés descalços marchavam firmes pelo mandiocal adentro. Ao fim da lida, barriga pesava tanto quanto o cesto que lhe servira de guarda-sol. A noite chegou com as primeiras dores. Pelas gretas da taipa, a lua viu quando seu grito cessou e o dele eclodiu. Veio do fogão a lenha o primeiro calor a abraçá-lo.

ENREDO

Fosse por vontade própria, não seguiria os passos trôpegos do matuto adiante. A dívida da guarida não estava quitada, apesar dos anos de labuta. Dádiva, só recebera o nome. Aprendeu – moleque ainda – a encontrar descanso na névoa do tabaco e no doce da cana. Os anos passaram como voo de araçari arisco. Moldado à rotina, cansou-se de questionar a vida. Por não saber rezar, apertou o chapéu de palha contra o peito e pediu a graça de ir-se embora. Deus não lhe deu ouvidos e mandou Ana Quitéria bater em sua porta. Aqueles olhos – famintos de afeto – deram a ele a vontade de ficar.

Partiram juntos em busca de veredas férteis e solos límpidos. Travessos como as crianças, brotaram os ipês-do-cerrado. O trabalho se mantinha, mas o descanso agora tinha goles de tagarelice e tragos de sabedoria. O tempo teimava em ser medido por fatias de queijo e xícaras de café. Cada noite em volta da fogueira deixava o chapéu de palha mais perto do peito. Severino apresentava a gratidão à madrugada. O céu o ensinara a chorar.

EPÍLOGO

O crepúsculo cobria-lhe o olhar. O semblante de Ana Quitéria iluminava seu horizonte. Ao seu lado, filhos e netos fingiam enganar as lágrimas. Páginas de um grande livro lamuriavam, incrédulas diante do ponto final. Quem dera todos pudessem lê-las. Próximo ao ocaso, perguntou a um dos netos pelo chapéu de palha. “Tenho muito a agradecer” – disse-lhe, mãos e chapéu ao peito.

– Algum arrependimento, vovô?

– Só um, querido. Queria ter aprendido a escrever.

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