Pizzas em Nova York…

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Nova York, 20 de setembro de 2021. Os últimos raios de sol iluminavam a fachada do Trump Memorial Hostel. A noite se aproximava, mas o pequeno grupo de pessoas ainda debatia sobre o que seria dito no discurso que um deles faria no dia seguinte. Embalagens de pizza amontoavam-se pelos cantos do amplo quarto com vista para o Cattle’s Hole Burgers da 46th Street. O restaurante era velho conhecido de um dos membros da comitiva. Foi lá que, em um passado distante, ele aprendera a fritar hamburguer feito com carne de segunda, a colocar água no ketchup, a rachar o pão e deixar só a casca para os clientes. Lições inesquecíveis que levaria para a vida.

A conversa parecia longe de um consenso. Mesmo assim, a confraria decidiu fazer uma pequena pausa. Um sujeito magro, de óculos, dos menos participativos até então, pediu licença para tocar uma música na sanfona que trouxera de casa. Os acordes de “Ave Maria” ressoaram pelo ambiente. Não tardou muito, e a voz melodiosa do músico foi interrompida pelos gritos vindos dos quartos vizinhos. Indignado diante daquela clara tentativa de censura às liberdades de expressão e religiosa, o ex-funcionário da hamburgueria levantou-se, abriu a porta do quarto e, em um inglês fluente, bradou:

– You suns of a beach, I send a cable and a soldier to you now.

Fez-se silêncio, mas o momento de paz e contemplação fora quebrado. Com o tempo se esgotando, decidiram deixar a música de lado e voltar suas atenções para os temas a serem abordados no tal discurso. Um deles, experiente em algum trabalho ligado a caixas, descera para buscar mais embalagens de pizza. O jantar tinha que ser garantido antes que os balcões voltados para as calçadas estivessem fechados. Por alguma razão, restaurante algum permitia a entrada deles. E tem gente que acha que não existe mais preconceito na América…

No quarto, a discussão recomeçava:

– Eu disse que vinha pra cá pra falar verdades. Não é verdade que eu tô sendo perseguido e impedido de trabalhar, porra? – perguntou o homem de chinelo Rider e camisa do Palmeiras.

– Concordo pai. Você tem que mostrar pra todos que, enquanto o mundo fica de olho nas nuvens que passam pela janela, os jacarés e as outras criaturas do pântano passeiam soltas pelas ruas, becos e avenidas, vagando por entre a marcha triunfante e a fumaça que cega. Se os predadores naturais não amedrontam a matilha, temos que cuidar da nossa própria preservação.

Estupefatos, os demais presentes entreolharam-se, à espera de que alguém arriscasse uma resposta.

– Olha só, filho, no tocante ao que você disse aí, acho que tá tudo certo. Mas, por via das dúvidas, deixa que eu fico por conta do twitter hoje, talquei?

– Tá aqui, pai, mas cuidado com as nuvens carregadas – alertou mais uma vez o devoto e sábio filho, antes de sair com o camareiro, de quem ficara amigo na noite anterior.

– Quer saber? Acho que vou falar de improviso mesmo. Essa coisa de ler não é comigo. Todo mundo vibra quando eu sou autêntico e falo o que me dá na telha. Eles vão me aplaudir e me autorizar a fazer o que eu quiser.

– Se o senhor me permite uma opinião – interrompeu um terceiro – eu acho que o público daqui não tá disposto a autorizar nada não. Da última vez, o senhor tinha companhia daquele cara de topete, lembra? Amanhã, estará sozinho.

– Sozinho? Eu nunca tô sozinho. Todo mundo me adora. Tá decidido, vai no improviso mesmo.

– Desculpe interromper, querido – disse uma mulher, abrindo a porta – telefone pra você.

– Alô?… ah, não, você de novo?… tá bom, tá bom… pode mandar… prometo que vou ler, fazer o quê?… mas, olha só, se você escrever outra mesóclise eu juro que nunca mais te deixo brincar com aquela faixa, talquei?

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