Manga com leite e outros venenos…

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“Você acabou de comer. Tem que esperar pelo menos uma hora antes de entrar no banho”.

Não sei quantas vezes a minha mãe repetiu essa frase ao longo da minha infância. Bobagem? Pode ser, mas prefiro enxergá-la como uma inocente preocupação de quem sempre acreditou que a união de água e estômago cheio era tão incompatível quanto TV e dever de casa, tão perigosa quanto vento encanado nas costas e tão execrável quanto falar palavrão no almoço de domingo.

O fato é que, durante muito tempo, eu também acreditei. Quantas vezes deixei de almoçar só para não ter que esperar duas horas antes de mergulhar na piscina (nadar é muito mais perigoso que tomar banho, todo mundo sabe disso). E olha que eu não podia nem reclamar. A mãe do meu vizinho Luiz, por exemplo, achava que aprender inglês era tão inútil quanto um ministro na atual pasta da Saúde. A minha tia Sebastiana nunca deixou que meu primo fizesse caretas com medo de que ficasse para sempre com a cara do Cerveró. E a avó do meu amigo Renato dizia que manga com leite era algo quase tão venenoso quanto a língua da Gleisi Hoffmann. Tempos em que as crendices populares eram passadas de geração a geração, e não de whatsapp a whatsapp.

Mas o mundo evoluiu e a ciência mostrou aos pioneiros propagadores de fake news que seus mitos careciam de provas ou, pelo menos, de uma ação orquestrada de bots para se manterem vivos (haja vista o bem sucedido caso de ressurreição dos terraplanistas).

Entretanto, em pleno século XXI, ainda há quem insista em julgar incompatíveis pares de ideias e ações que sequer antagônicas são. Exemplos não faltam. Criticar o governo federal e não ser de esquerda é um deles. Assim como a manga não se dá com o leite, uma crítica ao governo não deveria vir de alguém que não fosse comunista. É imperativo, como se a manga exigisse do leite o monopólio da sua capacidade de envenenamento, deixando atônitos os alérgicos à lactose.

Será que minha mãe também veria incompatibilidades na condenação da forma corporativista e inconstitucional com a qual o Inquérito das Fake News foi instaurado e, ao mesmo tempo, na total repulsa às notícias falsas levianamente divulgadas por tanta gente?

Ou, quem sabe, na defesa da liberdade de expressão irrestrita aliada à indissociável responsabilidade pelo que se diz?

Desde quando a aversão a um grupo de bandidos incompetentes idolatrados por uma horda de fanáticos só pode ser verbalizada por uma horda de fanáticos idólatras de outro grupo de bandidos incompetentes?

E – para encerrar a sessão de perguntas retóricas – será que não aprendemos nada com as experiências dos nossos antepassados?

Curiosamente, os mesmos que se esforçam para normatizar as distorcidas correlações mencionadas, não são capazes de perceber que suas próprias instáveis atitudes divergem ao sabor das ideologias.

Assim, torna-se aceitável que a indignação motivada por uma suposta restrição às liberdades individuais se dê na forma de manifestações que pedem o fim das instituições democráticas e a volta de um regime caracterizado justamente pelo cerceamento da liberdade plena.

Assim, tornam-se corriqueiras as violentas condenações de simples menções a comportamentos autoritários vindas daqueles que sistematicamente enaltecem regimes totalitários e genocidas.

Hoje, muitos chamam todas essas incoerências de hipocrisia. Se vivêssemos outros tempos, alguém certamente diria – com admirável sabedoria – que pau que dá em Chico deveria dar em Francisco, que o pior cego é aquele que não quer ver, que, à noite, todos os gatos são pardos e que, definitivamente, a mentira é como uma bola de neve, quanto mais rola mais engrossa.

Será que ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?

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